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"Me dê motivo, para ir embora": a Convenção n° 158 da OIT e a decisão do STF sobre a denúncia de tratados internacionai

Em 26 de maio de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou uma celeuma jurídica iniciada em 1996, com a denúncia da Convenção n° 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Brasil

Em 26 de maio de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou uma celeuma jurídica iniciada em 1996, com a denúncia da Convenção n° 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Brasil. O tratado previa a necessidade de motivação das dispensas realizadas pelo empregador, razão pela qual foi frequentemente associado, no meio trabalhista, à canção consagrada por Tim Maia que intitula este artigo. O objetivo era evitar dispensas arbitrárias e discriminatórias, mas seu texto preocupava o empresariado, que temia ser privado da possibilidade de demitir sem uma justa causa.

A Convenção, aprovada na 68ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra em 1982, entrou em vigor internacional em 1985, quando atingiu o número mínimo de ratificações para tanto necessário. Até hoje, dos 187 Estados membros da OIT, 36 a tinham ratificado. Dentre eles, o Brasil, que, após a aprovação do texto da Convenção pelo Congresso Nacional em 1992 (Decreto Legislativo n° 68), depositou a carta de ratificação no início de 1995. Com sua subsequente promulgação e publicação, a Convenção entrou em pleno vigor no Brasil, em 10 de abril de 1996 (Decreto Executivo n° 1.855). Contudo, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso denunciou a Convenção já em 20 de novembro de 1996, tornando pública sua decisão por meio do Decreto n° 2.100 de 20 de dezembro de 1996, com o objetivo de fazer cessar também sua vigência no plano doméstico.

Ocorre que a denúncia da Convenção foi realizada pelo Presidente da República de modo unilateral e, diferentemente de sua ratificação, não foi previamente aprovada pelo Congresso Nacional. Diante disso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) propuseram a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 1.625 perante o STF, questionando a validade da denúncia da Convenção e do respectivo Decreto Executivo. O argumento das entidades era simples: a denúncia de tratados internacionais exigiria, tal qual a ratificação, a aprovação prévia do Congresso Nacional.

No plano internacional, o chefe do Poder Executivo (no caso, o Presidente da República) representa o Estado. Assim sendo, possui competência tanto para ratificar como para denunciar tratados internacionais. Não há dúvida de que, para o Direito Internacional, o Brasil desobrigou-se do cumprimento da Convenção, quando de sua denúncia. Por outro lado, no sistema jurídico brasileiro, os tratados internacionais, ao serem a ele incorporados, com sua promulgação e publicação, passam a integrar o direito interno para todos os fins. O procedimento pelo qual se dá tal incorporação ou a revogação de normas provenientes de tratado no direito interno era um ponto controvertido que, agora, foi esclarecido pelo STF.

As divergências em torno da matéria decorriam da falta de clareza dos dispositivos constitucionais que tratam do assunto. O artigo 49 da Constituição Federal (CF) estabelece como de competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. Já o artigo 84 da CF prevê que compete privativamente ao Presidente da República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”.

Da leitura conjunta das duas disposições, tem-se sustentado a posição de que haveria tratados (aqueles que não geram encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional) que não necessitariam de aprovação prévia do Congresso Nacional, para serem ratificados pelo Presidente da República e, subsequentemente, incorporados ao sistema jurídico doméstico, com sua promulgação e publicação. A tese é corroborada pela existência, em pleno vigor tanto internacional como nacional, de uma série de “acordos executivos”, ou seja, de acordos concluídos pelo Presidente sem a participação do Congresso. Porém, esse não é o caso da Convenção da OIT em questão, que foi debatida e aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal no início dos anos 1990.

Segundo a jurisprudência do STF[1], os tratados internacionais que têm por objeto direitos humanos, como é o caso das Convenções da OIT, possuem, no mínimo, status supralegal, isto é, são hierarquicamente superiores às leis ordinárias. Quanto à denúncia unilateral da Convenção n° 158 da OIT, questionou-se, então, se um Decreto Executivo seria capaz e suficiente para afastar a aplicabilidade de uma norma supralegal no plano do direito interno. Assim, mostrou-se necessário aclarar a competência constitucional para a denúncia de tratados internacionais.

Ao debater o tema em seu curso de Direito Internacional Público, Francisco Rezek[2] rememorou discussões semelhantes ocorridas quando o Brasil deixou a Liga das Nações, em 1926, após uma denúncia unilateral efetuada pelo então Presidente da República Artur Bernardes. À época, a denúncia foi defendida por Clóvis Bevilacqua, então consultor jurídico do Itamaraty, por entender que a existência de uma cláusula de denúncia no tratado constitutivo da organização permitia concluir que sua efetivação pelo Presidente da República, já havia sido autorizada pelo Congresso por ocasião da aprovação do texto do tratado.

O tema também foi objeto de debate nos Estados Unidos da América (EUA), quando o estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China levou o Presidente Jimmy Carter a denunciar unilateralmente tratados internacionais anteriormente celebrados com Taiwan. Membros do Senado contrários à denúncia defenderam a existência do “princípio do ato contrário”, segundo o qual, se a conclusão do tratado dependia de uma conjugação de vontades entre o Parlamento e o Presidente da República, as mesmas vontades deveriam estar conjugadas para romper o compromisso. O tema não chegou a ser discutido pela Suprema Corte estadunidense na ocasião, que se esquivou de analisar a questão, alegando tratar-se de decisão política e, portanto, estranha ao Judiciário. A mesma válvula de escape tem afastado a Suprema Corte de debater as polêmicas denúncias efetuadas por Donald Trump a diversos relevantes compromissos assumidos pelos EUA no plano internacional, como o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, por exemplo.

O ex-ministro do STF e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, Francisco Rezek, porém, defende em sua obra uma posição distinta: se duas vontades precisam estar presentes para concluir um tratado, seria necessário que ambas se mantivessem firmes e inalteradas para que ele continuasse vigendo, de modo que tanto o Presidente da República pode denunciar unilateralmente um tratado internacional como o Congresso Nacional pode provocar sua denúncia, ainda que a contragosto do Presidente.

Os referidos argumentos estiveram presentes na discussão da ADI n° 1.625 pelo STF, cujo julgamento foi aguardado por 26 anos no meio jurídico, em especial no trabalhista, diante da repercussão óbvia que a Convenção nº 158 teria para contratos de trabalho.

Afinal, o STF acolheu o argumento que embasou a propositura da ADI n° 1.625 e o entendimento de que os tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional só podem ser denunciados pelo Presidente da República com o aval do Congresso.

Contudo, os ministros do STF decidiram manter afastada do sistema jurídico brasileiro a Convenção n° 158 da OIT, restando inalterado o cenário jurídico na seara trabalhista quanto a dispensas sem justa causa. Isso porque os ministros acordaram com a necessidade de modular os efeitos do julgamento, de modo que a definição do procedimento para denúncia de tratados só tivesse efeitos prospectivos, alcançando apenas tratados que venham a ser denunciados a partir da publicação do julgamento.

Denúncias efetuadas anteriormente, como a da Convenção n° 158 da OIT, terão sua eficácia preservada em decorrência de presunção de sua legitimidade e para garantir a segurança jurídica. Assim sendo, na prática, a dispensa sem justa causa continua sendo admitida na seara trabalhista, não precisando o empregador motivar a dispensa de um empregado. Não obstante, o julgamento sobre a Convenção n° 158 da OIT torna-se um precedente importante, a exigir, doravante, que o Presidente da República obtenha a prévia aprovação do Congresso Nacional para denunciar tratados internacionais (pelo menos aqueles cuja ratificação tenha dependido de sua aprovação).

[1] Ver, por exemplo, STF, RE 466.343/SP.

[2] Direito Internacional Público: Curso Elementar. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

*Michelle Hastreitter é advogada do departamento Societário da Andersen Ballão Advocacia.